Nos últimos anos, sobretudo após a pandemia, o acesso à literatura passou por transformações. A digitalização de livros e a popularização de ebooks, assinaturas digitais e bibliotecas online criaram oportunidades inéditas para leitores de todas as idades e regiões. Ao mesmo tempo, a pirataria digital também se intensificou, gerando prejuízos significativos para autores independentes, pequenas editoras e profissionais da cadeia do livro.

A democratização da  literatura vai além de aumentar a oferta de livros: trata-se de garantir que todas as pessoas tenham acesso a obras de qualidade, independentemente de barreiras financeiras, sociais ou geográficas. Para isso, é necessário investir em políticas públicas, projetos comunitários e soluções digitais inclusivas.

Programas de empréstimo digital, bibliotecas públicas modernizadas, projetos de doação e circulação de livros físicos e digitais são essenciais para garantir leitura acessível a todos. Iniciativas como a Fundação Dorina Nowill, que disponibiliza livros em Braille, áudio e ePub para pessoas com deficiência visual, ampliam o acesso e promovem a inclusão cultural. Bibliotecas universitárias digitais, como USP, UFRJ e UFMG, e plataformas governamentais como a Biblioteca Nacional Digital e o Domínio Público, oferecem milhares de obras gratuitas, fortalecendo a diversidade cultural e educacional.

Contudo, o grande desafio está em equilibrar democratização com sustentabilidade econômica. O acesso amplo não pode comprometer o trabalho de autores, editores, revisores, diagramadores e demais profissionais que dependem da venda legal de livros para continuar produzindo conteúdo de qualidade.

Mesmo com alternativas legais, a pirataria persiste. Um dos fatores centrais é a diferença entre licença e posse do arquivo digital. Ao adquirir um ebook em plataformas como Amazon Kindle, o leitor não compra o arquivo, mas sim uma licença de leitura. Essa licença é regulada por diretrizes contratuais estritas que impedem a redistribuição do conteúdo sem autorização.

Importante esclarecer: a Amazon não acusa automaticamente o autor se seu ebook for pirateado fora da plataforma. Não há mecanismo que responsabilize o criador pelo compartilhamento ilegal de seu livro em outros sites ou grupos. Entretanto, se um título no Kindle Unlimited violar regras de exclusividade — por exemplo, se estiver disponível em pdf/epub em grupos ou sites de pirataria — a Amazon pode remover ou restringir o acesso ao programa, o que pode impactar mesmo sem culpa direta, restringindo o livro e/ou até mesmo o perfil do autor do site. 

Apesar dessa proteção relativa, a pirataria ainda causa prejuízo financeiro direto: redução de royalties, vendas comprometidas e dificuldade de investimento em novas obras. Além disso, há impactos emocionais significativos: desvalorização do trabalho, frustração e desgaste psicológico, que podem levar à desistência de projetos ou ao desânimo criativo.

Outro fator que alimenta a pirataria é o pertencimento. O fenômeno do pertencimento é uma força poderosa que molda comportamentos humanos em contextos sociais, culturais e digitais. No universo da leitura, especialmente na era digital pós-pandemia, essa necessidade de estar inserido em grupos e vivenciar o que acontece no momento tem impactos significativos, inclusive na prática da pirataria de livros.

Quando um livro é lançado — especialmente se esperado por um público fiel, como ocorre com obras que existem fãs esperando por aquele lançamento — há uma certa urgência de interesse, comentários e compartilhamentos nas redes sociais e em grupos de discussão digital. Esse movimento cria um verdadeiro "evento cultural", onde o acesso à obra não representa apenas a leitura em si, mas o ingresso em um espaço coletivo de participação, debate e pertencimento. Estar por dentro das novidades e fazer parte do momento é entender e viver o zeitgeist — o espírito do tempo — que configura identidades e conexões sociais.

A pirataria, nesse contexto, emerge como um meio rápido e acessível de participar desse fenômeno. Quando o preço do livro físico e ebook é elevado, sem contarmos a ideia do acesso legal ao ebook ser restrito, a versão pirateada, livre de barreiras e imediata, torna-se a porta de entrada para quem deseja estar junto, não perder o momento e evitar a sensação de exclusão social. Esse impulso muitas vezes não se baseia apenas em questões econômicas ou em uma insensibilidade à propriedade intelectual, mas está ligado a um desejo humano fundamental de vínculo, pertencimento e experiências compartilhadas.

No caso do lançamento do "Alchemised" pela editora Intrínseca, o fato do ebook ter sido pirateado no mesmo dia do lançamento ilustra claramente essa dinâmica. Apesar do pronunciamento oficial e do valor alto do livro físico e ebook, a demanda na comunidade por um acesso rápido ao conteúdo levou à busca e disseminação do arquivo pirata em formato epub. O medo de ficar de fora do debate, da onda do lançamento e da conversa ativa em redes digitais motiva leitores a recorrerem à pirataria, mesmo que saibam que isso é ilegal e prejudica o autor, e nesse caso a editora com seus funcionarios.

Os grupos digitais, como canais de Telegram, Whatsapp e Discord, e sites onde compartilham livros piratas, são socialmente normalizados. Um exemplo recente é o grupo “Livros PDF”, com mais de 330 mil membros que distribuíam ilegalmente centenas de obras de ficção: romances, fantasia e outros gêneros que não têm caráter acadêmico. A Justiça notificou os responsáveis, reforçando que a prática é crime no Brasil, e que há consequências legais claras para quem atua nesses grupos.

Portanto, o ato de piratear transcende a simples questão do custo ou da conveniência: é uma resposta social a uma necessidade de inclusão e participação num ambiente digital onde estar conectado e participando tem peso simbólico e emocional. Compreender essa complexidade é essencial para pensar estratégias de combate à pirataria que respeitem esses aspectos humanos, oferecendo caminhos legais que não só facilitem o acesso econômico, mas também criem comunidades de leitores engajadas e que valorizem o esforço criativo.

Assim, abordar o pertencimento no combate à pirataria é reconhecer que o acesso à cultura é também uma experiência social, e que políticas e ações devem integrar educação, inclusão e formas de fazer o leitor se sentir parte do movimento literário de maneira legítima, justa e sustentável. Somente com essa compreensão profunda será possível transformar o panorama da leitura digital, valorizando a autoria e fortalecendo o mercado editorial no Brasil contemporâneo.

Estratégias para Incentivar a Leitura Legal

  1. Educação e Conscientização
    Informar leitores sobre os impactos reais da pirataria para autores independentes e pequenas editoras, usando dados, depoimentos e campanhas educativas. Explicar o funcionamento do DRM e os benefícios da leitura legal ajuda a criar empatia.

  2. Promoção de Alternativas Legais Acessíveis
    Programas de assinatura como o Clube LiteraWorld onde fornece livros de autores nacionais com preços acessíveis, bibliotecas digitais gratuitas e iniciativas como Encha Seu Kindle oferecem milhares de ebooks com acesso seguro. Autores e bookfluencers distribuem livros legalmente, promovendo leitura coletiva e senso de pertencimento à comunidade literária.

  3. Leitura Coletiva e Engajamento Comunitário Positivo
    Eventos de leitura coletiva, lives, clubes de leitura e debates online reforçam a ética na leitura digital, criando pertencimento responsável e reduzindo a necessidade de recorrer à pirataria.

  4. Valorização do Trabalho Criativo
    Destacar que cada obra representa horas de dedicação, investimento financeiro e criatividade. Incentivar o apoio legal aos autores transforma a compra em ato de reconhecimento cultural.

  5. Inclusão e Acessibilidade
    Livros em formatos acessíveis, como Braille, áudio e dispositivos adaptáveis ajudam a diminuir barreiras, mostrando que acesso legal e inclusivo é possível e suficiente.

  6. Pertencimento Ético
    Criar comunidades que incentivam a leitura legal, promovam interação com autores e eventos colaborativos, reforçando que pertencer a um grupo literário não significa infringir a lei.

Conclusão

Em síntese, a democratização da literatura na era digital é um objetivo nobre e alcançável, mas que exige um equilíbrio delicado entre acesso amplo e a sustentabilidade da cadeia criativa. Como demonstrado, a pirataria não é um desafio puramente econômico ou legal, mas um fenômeno social complexo, alimentado por uma profunda necessidade humana de pertencimento e participação cultural imediata. A urgência em fazer parte de um evento cultural no momento do seu acontecimento pode, muitas vezes, sobrepor-se à ética, levando leitores a optarem por acessos ilegais.

No entanto, compreender esta raiz do problema é a chave para combatê-lo de forma eficaz. As estratégias mais promissoras não são apenas repressivas, mas sim construtivas. A promoção de alternativas legais e acessíveis, como programas de assinatura e bibliotecas digitais, combinada com a criação de comunidades de leitores engajados e éticos, oferece um caminho sustentável. Ao transformar a compra e a leitura legal em um ato de valorização cultural e de ingresso em um grupo com interesses comuns, é possível satisfazer o desejo de pertencimento de forma positiva.

Portanto, o futuro da leitura digital depende de uma abordagem multifacetada que una educação, acesso, engajamento e valorização. Democratizar verdadeiramente a literatura significa garantir que todos possam acessá-la sem barreiras injustas, mas sempre com o firme compromisso de honrar e remunerar o trabalho criativo que a torna possível. Só assim construiremos um ecossistema literário digital que seja, de facto, inclusivo, vibrante e sustentável para autores, editores e leitores.

 

Texto escrito por: Cass Razzini

 

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