“Escreva como se ninguém fosse ler.”
Esse conselho, aparentemente paradoxal, já atravessou gerações de autores, oficinas de escrita e livros sobre criatividade. À primeira vista, pode soar como um desperdício; Se ninguém vai ler, por que escrever? Mas, na prática, essa filosofia é uma das mais libertadoras para qualquer pessoa que deseje se reconectar com a própria voz criativa.
Muitos bloqueios criativos nascem da presença sufocante de um “leitor imaginário”. É aquela voz que fica na sua mente enquanto escreve: “isso não está bom o bastante”, “o que vão pensar de mim?”, “ninguém vai levar isso a sério”, “quanta bobagem, isso nem faz sentido”. Essa antecipação do julgamento externo gera quatro armadilhas principais:
Autocensura: cortamos ideias antes mesmo de escrevê-las.
Padronização: sacrificamos a voz própria em busca de algo “aceitável”.
Polimento excessivo: revisamos tanto que matamos a espontaneidade.
Paralisia criativa: ficamos presos diante da página em branco.
Esse fenômeno não é exclusivo de escritores. Psicólogos identificam o “crítico interno” em diferentes formas: o perfeccionista, o comparador, o catastrófico. Todos têm em comum a busca por aprovação externa, que mina a autenticidade.
Anne Lamott, em Bird by Bird, descreveu os famosos “shitty first drafts” (os primeiros rascunhos ruins). Para ela, é impossível chegar a um texto lapidado sem passar por uma versão caótica, imperfeita e até mesmo embaraçosa. É nesse terreno instável que as ideias genuínas florescem.
Natalie Goldberg, em Writing Down the Bones, defende a prática da escrita livre: escrever sem parar, sem revisar, sem pensar em coerência. O objetivo não é produzir algo pronto para publicação, mas descobrir a sua capacidade imaginativa e sua autenticidade sem esse bloqueio . Julia Cameron, em The Artist’s Way, recomenda as famosas "morning pages”: três páginas escritas toda manhã, sem censura, para limpar a mente e abrir espaço para a criatividade.
Essas técnicas se apoiam em um princípio essencial: o caos é fértil. Sem ele, só sobra a superfície polida, mas sem profundidade.
A escritora Marguerite Duras sintetizou: “Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos.” Ou seja, só descobrimos o que temos a dizer durante o ato de escrever. Não antes. Não depois. É como atravessar um túnel escuro e, a cada palavra, acender uma lanterna nova no caminho.
Mark Levy, em Accidental Genius, chama isso de escrita acelerada: quando escrevemos mais rápido do que conseguimos censurar, liberamos ideias que normalmente ficariam presas no inconsciente.
Esse processo transforma a escrita em algo mais que um exercício de linguagem: é uma forma de autoconhecimento. Escrever sem plateia é, acima de tudo, um mergulho interno.
O que quero dizer é que, quando você escreve sem pensar em leitores, aplausos ou validações externas, a escrita deixa de ser apenas “palavras no papel” e se torna uma ferramenta de exploração pessoal.
Quando não há plateia, a escrita ganha um outro valor: ela passa a ser um espelho, um espaço onde você se observa, se confronta, se descobre.
É como um diário íntimo: ninguém vai julgar, então você pode ser brutalmente honesto consigo mesmo. Esse processo permite acessar sentimentos escondidos, organizar pensamentos confusos, perceber padrões que você talvez ignore na rotina. Por isso que escrever assim é um “mergulho interno”, você vai descendo em camadas de si mesmo que só aparecem quando se dá tempo, silêncio e papel.
Hoje, vivemos em uma era de hiperexposição, onde quase tudo que produzimos nasce já com a expectativa de ser compartilhado, seja em blogs, redes sociais ou newsletters. Esse excesso de olhar externo pode sufocar a experiência de escrever apenas por escrever.
Sempre repetimos que a jornada de um escritor é solitária. Mas será mesmo? No contexto de hoje, Julian Fuks parece ter razão ao afirmar: “Já ninguém escreve só”. Mas será que não deveríamos recuperar essa solidão criativa? Não como isolamento, mas como espaço de liberdade. Aceitar que talvez ninguém leia é um gesto paradoxalmente libertador: quando paramos de escrever para todos, passamos a escrever algo que finalmente pode tocar alguém.
Aqui vai estratégias práticas para escrever sem plateia:
1. Escrita livre diária: 10 a 20 minutos de fluxo contínuo, sem levantar a caneta ou pausar o teclado.
2. Gatilhos de memória: comece frases com “Eu lembro…” ou “Eu sinto…” e siga sem pensar demais.
3. Diário de lixo: um caderno dedicado a ideias ruins, frases embaraçosas e experimentos falhos.
4. Cartas não enviadas: escreva para pessoas reais ou imaginárias, versões passadas ou futuras de si mesmo ou personagens.
5. Aceite o rascunho imperfeito: trate a primeira versão como uma etapa necessária, não como falha.
6. Crie rituais: use música, horários fixos ou ambientes específicos para treinar o cérebro a entrar no fluxo criativo.
Essas práticas não servem apenas para escrever mais: servem para escrever mais verdadeiro.
Escrever sem plateia não muda apenas os textos que produzimos, muda a forma como nos vemos como criadores. Deixamos de depender da validação alheia e recuperamos a honestidade radical que estava sufocada.
A escritora Dallie Ago resume: “escreva como se ninguém fosse ler” não é sobre desistir dos leitores, mas sobre recuperar a coragem de escrever algo digno de ser lido.
E o paradoxo é este: quanto mais íntima e específica é nossa escrita, mais universal ela se torna. Anne Lamott dizia que escrever e ler diminuem o isolamento humano. Ou seja, ao escrevermos apenas para nós mesmos, acabamos criando pontes invisíveis que alcançam os outros.
Conclusão
A verdadeira mágica da escrita não acontece quando tentamos impressionar, mas quando nos permitimos mergulhar no caos do rascunho, sem plateia, sem filtros, sem máscaras. Escrever como se ninguém fosse ler é um ato de coragem criativa, e é justamente isso que dá vida a textos capazes de atravessar fronteiras pessoais e tocar profundamente quem, um dia, for ler.
No fim, essa filosofia nos lembra que a escrita é antes de tudo uma prática de liberdade. O leitor, se vier, é consequência. Mas a transformação começa no instante em que ousamos colocar no papel nossa verdade mais íntima, sem pedir permissão para existir.
Texto escrito por: Cass Razzini
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