Com o avanço das redes sociais, observar o livro tornou-se tão comum quanto lê-lo. A leitura performativa — isto é, o ato de ler ou mostrar que se lê não apenas pelo prazer ou pela transformação, mas como parte de uma construção de identidade, de status ou de estética — ganhou visibilidade significativa. Fotos de estantes bem organizadas, capas bonitas, ambientes literários, BookTok, Bookstagram: tudo isso passou a compor não apenas um hábito cultural, mas um gesto simbólico de pertencimento. Este artigo argumenta que, embora a leitura performativa tenha aspectos positivos, ela carrega problemáticas concretas que ferem, em vários níveis, o valor da leitura enquanto prática de aprofundamento, reflexão e desenvolvimento pessoal.
1. A leitura como marketing pessoal / performatividade
A leitura performativa manifesta-se quando pessoas consomem livros mais pelo visual, pela aparência de erudição ou de pertencimento do que pelo conteúdo. Alguns fenômenos recentes ilustram isso:
● O crescimento de BookTok, Bookstagram e comunidades afins, onde se destacam posts mostrando livros virais, capas que “ficam lindas na foto”, estantes organizadas, cômodos decorados etc.
● Muitas pessoas admitem ter pilhas de livros não lidos (“TBR” = to be read) ou comprar livros por impulso, com base em fotos ou tendências visuais, não necessariamente por interesse no enredo ou na reflexão que o livro pode proporcionar.
● O uso de hashtags ou estéticas específicas (como dark academia, cottagecore, aesthetic bookshelf) que valorizam o visual mais do que o literário.
Essas práticas não são necessariamente ruins por si só, mas quando se tornam predominantes, deslocam o centro do que significa “ler”.
2. Distinção entre ler para aprender/enriquecer vs ler para aparentar
Ler tem múltiplos benefícios: desenvolvimento de empatia, pensamento crítico, expansão de vocabulário, contato com outras culturas e ideias, reflexão interna... Ler com profundidade permite transformar o leitor, ampliar horizontes e dialogar com o mundo.
Quando a leitura vira performance, o risco é que:
● o conteúdo se torne secundário
● a reflexão sobre o livro — sobre suas ideias, estilos, problemáticas — seja negligenciada
● leia-se pouco ou de forma superficial, apenas fragmentos, citações, comentários rasos, focando no que rende likes ou no que impressiona visualmente
3. Problemáticas decorrentes
A partir da leitura performativa decorrem várias consequências negativas, que afetam indivíduos, culturas de leitura e o mercado editorial.
● Superficialidade: Como acima, a leitura sem profundidade, leitura de resumos, trechos, comentários externos em vez de leitura integral; falta de crítica ou de questionamento.
● Pressão social e culpa: Sentimento de obrigação de ler “livros certos”, seguir tendências, mostrar que se está lendo — mesmo que isso gere frustração ou leve a desistir.
● Consumismo: Comprar livros por aparência, sem finalidade real de leitura; gastar tempo e dinheiro; estocar livros nas estantes apenas para decorar ou “render conteúdo” nas redes.
● Visibilidade (ou a falta dela): Aquelas leituras que não correspondem a uma estética valorizada perdem visibilidade; obras periféricas, autores menos conhecidos, literatura crítica ou menos comercial podem ser marginalizados.
● Fadiga, saturação de tendências: o algoritmo favorece certos estilos, gêneros, autores “instagramáveis” ou “virais”, podendo gerar repetição, banalização, menor diversidade.
4. Evidências e estudos acadêmicos recentes
Aqui alguns estudos recentes que discutem componentes da leitura performativa, seus impactos e tensões:
● The #BookTok Connection: Examining Cultural and Linguistic Identity Expression in Online Reading Communities (2025) estuda como #BookTok permite a leitores de diferentes origens expressarem identidade cultural e linguística, mas também indica tensões: o que é valorizado dentro desses espaços pode estar limitado às normas estéticas ou ao que o algoritmo favorece. MDPI
● Reading Between the Likes: The Influence of BookTok on Reading Culture (Elisavet Rozaki, 2023) investiga como BookTok afeta os hábitos de leitura, especialmente modos de engajar com livros, escolha de leituras, e mostra que muito do que se compartilha tende a enfatizar recomendação visual, emoção imediata, hype, mais do que análise ou profundidade.
● Social reading cultures on BookTube, Bookstagram, and BookTok (Bronwyn Reddan) analisa como adolescentes na Austrália escolhem leituras de lazer e como as plataformas digitais moldam não apenas o que eles leem, mas como eles falam de leitura. Aponta que existe uma “cultura de leitura social” que valoriza o visível, o compartilhável. Slav
● Também há estudos que observam efeitos negativos do uso excessivo de redes sociais sobre a compreensão de leitura ou sobre atenção sustentada, embora nem sempre diretamente ligados à estética de mostrar leitura. Por exemplo, The Effect of Using Social Media Towards Students’ Reading Comprehension (Reterika, etc.) mostra que maior intensidade no uso de redes sociais está correlacionada com níveis mais baixos de compreensão de leitura em certos contextos. OJS UNM
5. Contra-argumentos e nuances
Para ser justa, a leitura performativa não é completamente negativa. Há várias nuances:
● Pode servir como porta de entrada: para pessoas que normalmente não têm o hábito de ler, a estética literária ou social pode despertar curiosidade, motivação inicial, incentivo para comprar um livro ou prestar atenção em narrativas que antes ignoravam. Esse foi o caso de “Quarta Asa”, por exemplo, que trouxe vários novos leitores ao mundo. O que começou com curiosidade em relação a um livro virou uma prática constante na vida de alguns.
● Promove comunidades de leitores: BookTok, Bookstagram, BookTube oferecem espaços de troca, indicação, pertencimento, diálogo sobre livros; para muitos, isso é muito positivo.
● Não há nada de errado em gostar de boa aparência ou de estética: capas bonitas, ambientes agradáveis, fotos bem feitas podem aumentar o prazer de ler ou de mostrar leituras, desde que não substituam o conteúdo ou impeçam o aprofundamento.
A leitura performativa é um fenômeno real e crescente, intensificado pela cultura das redes sociais, pelo algoritmo que favorece o visual, pelo desejo humano de ser reconhecido, de pertencer, de mostrar identidade. Ela tem virtudes: pode trazer de volta o gosto pela leitura, gerar comunidades, incentivar pessoas que antes não se viam leitoras.
Mas sua prevalência sem limites acarreta riscos: de superficialidade, de deslocamento do conteúdo para o espetáculo, de perda da profundidade de pensamento, de desigualdade entre tipos de leitura, de gatekeeping.
Dizer “sou leitor” não deve ser somente um slogan de rede social ou uma etiqueta estética, mas algo enraizado em leitura real, diálogo, transformação. A reflexão crítica sobre como, para quem e por que lemos é essencial para que a leitura não seja apenas vista, mas vivida.
Texto escrito por: Fátima Aparecida da Silva
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