Quando se fala em literatura LGBTQIAPN+, dois termos aparecem lado a lado: representatividade e fetichização. A linha entre homenagem sincera e exploração superficial depende de construir personagens como pessoas reais, que têm escolhas próprias e camadas que vão além da sexualidade. Essa construção vale para qualquer autor, de qualquer identidade, porque o que diferencia é quem é o personagem, não o rótulo de quem assina a obra.

Esse debate não é novo: no século XIX, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, já misturava representação e estereótipos sob a ótica naturalista e determinista, retratando pessoas como produtos do meio e caindo, por vezes, em caricaturas. Ao mesmo tempo, muitos romances heterossexuais eróticos carregam fetiches sem serem tão cobrados por isso. Essa comparação ajuda a mostrar que a fetichização não é exclusividade de narrativas queer, mas uma questão estética e ética que atravessa gêneros e épocas.

No BL, a maioria do público são mulheres, chamadas de fujoshi. Como essas histórias circulam pelo mundo, viram um espaço de experimentação sobre desejo: às vezes abrem novas possibilidades, às vezes caem na exotização quando falta pesquisa e escuta. Pesquisas no Brasil também mostram que há policiamento do que é considerado legítimo dentro e fora do próprio fandom, com muitas disputas internas sobre limites e regras.

Homens gays podem fetichizar personagens gays, assim como autoras cis-heterossexuais podem escrever com profundidade; identidade autoral não imuniza a obra, e a régua deve ser verossimilhança. O que importa é que a narrativa evite transformar-se em espetáculo e se sim de dignidade, humor, trabalho, amizade e contradições para além do desejo como único motor.

O olhar crítico, muitas vezes, é seletivo: certas leituras e avaliações cobram mais de algumas pessoas do que de outras. No caso, autoras mulheres cis-hetero que escrevem M/M são julgadas com mais dureza e rapidez, colocando o rótulo de “oportunistas”, enquanto outros autores, em gêneros diferentes, passam sem o mesmo nível de questionamento;  ao longo do tempo, trabalhos de mulheres foram vistos como “menores”, “fúteis” ou “não literários”. Quando se critica primeiro “quem escreve” (mulheres) em vez de “como está escrito” (qualidade, pesquisa, construção de personagens), repete-se esse padrão histórico, não é um problema exclusivo de um grupo. Qualquer autor, de qualquer identidade, pode fetichizar personagens. Por isso, a conversa responsável avalia a obra em si, não a identidade do autor.

Muitas mulheres cis-heterossexuais contam que começam a escrever romances entre homens usando como um espelho íntimo: ao contar histórias com outras formas de afeto e desejo, foram registrando questões próprias antes mesmo de conseguirem nomear a própria sexualidade ou compensar expectativas de gênero. O que, à primeira vista, pode ser vista como voyeurismo ou mera curiosidade pelo “outro”, em muitos casos é uma etapa real de autodescoberta, em que a escrita vira um espaço seguro para testar linguagem, sensações e limites.

Esse dado biográfico, porém, não isenta a obra de responsabilidade estética e ética: personagens ainda precisam ter escolhas, camadas e contexto; relações pedem verossimilhança, consentimento e nuance; As escolhas narrativas devem evitar a “estética da dor” como destino obrigatório. Em vez de absorver falhas com base na intenção, esse contexto convida a uma leitura crítica mais justa: distinguir o que a autora quis fazer (intenção), o que pesquisou e escutou (preparo) e o que de fato está na página (resultado textual). Em última instância, é o texto — não a identidade de quem escreve, por favor — que comprova se houve representação cuidadosa ou se a história ficou estereotipada e foi criada para fetichização.

Como distinguir representatividade de fetichização

  • Representatividade: objetivos próprios, decisões com consequências, contradições internas; sexualidade integra o personagem com domínio; dor contextualizada, destino realizado;
  • Fetichização: sexualidade como única função narrativa; estética da dor como proteção; estereótipos rígidos de corpo e papel; cenas íntimas centradas no consumo do corpo sem subjetividade; exotização cultural.

Boas práticas para escrever M/M com respeito

  • Intenção clara: por que a história precisa ser queer e para quem; evite usar sexualidade como adereço ou plot twist.
  • Pesquisa e escuta: leia estudos e críticas, dialogue com comunidades e leitores beta, observe contextos históricos e culturais.
  • Leitura sensível: incluindo revisão especializada para rastrear vieses, exotização e dor não problematizada.
  • Complexidade cotidiana: incorpora trabalho, família, amizade, humor e conflito social como camadas narrativas.
  • Linguagem e consentimento: trato intimidado com foco em subjetividade, emoção e reciprocidade, não apenas no corpo.
  • Escolha do personagem: garantir objetivos próprios e decisões com consequência além do romance e da sexualidade.
  • Evitar  finais trágicos: se houver trauma, criar horizonte de cuidado e dignidade; não trate dor como destino obrigatório.
  • Evitar exotização: contextos culturais não são cenários “exóticos”; termos de estudo, costumes e referenciais locais.
  • Consentimento e reciprocidade: cenas íntimas precisam de consentimento explícito e foco em subjetividade, não só no corpo.
  • Linguagem precisa: usar terminologias atualizadas e respeitosas conforme guias de comunicação LGBTI+
  • Revisão de viés: verificar se a protagonista foi limitada a rótulos (corpo, trauma, amigo cômico) e recuperar nuances quando necessário.
  • Público-alvo e impacto: reflexão sobre para quem a obra fala e quais efeitos potenciais na comunidade retratada.

Como usar uma lista de verificação

  • Antes de escrever: defina a intenção e a bibliografia mínima do universo que será retratado.
  • Durante a escrita: aplicar os itens de escolha, consentimento, complexidade e linguagem a cada capítulo.
  • Na edição: procure ter leitura sensível e pede feedbacks sobre estereótipos e “estética da dor”.

Aplicar essa lista ajuda a manter o foco nos personagens LGBTQIAPN+, pois são pessoas reais, e a diferença entre representatividade e fetichização está na qualidade não na identidade de quem escreve, lembre-se disso, ok?

Perguntas-guia para editar o próprio texto

  • Este personagem tem vida própria, desejos e contradições, ou é função do enredo de outra pessoa?
  • O conflito gira só em torno da sexualidade, ou há trabalho, amizade, cotidiano e projetos de futuro?
  • A dor é espetáculo ou parte de um arco que inclui cuidado, afeto e dignidade?
  • A cultura retratada é cenário exótico ou contexto compreendido e respeitado?

Conclusão

No fundo, o debate não se resolve com listas de quem pode ou não pode escrever, mas com critérios de construção: personagens LGBTQIAPN+ são pessoas, não atalhos narrativos; generalizações desviam o foco, enquanto a crítica justa pergunta se a obra amplia a representação ou cai no estereótipos. O caminho exige criação, pesquisa e escuta para transformar desejo e diferença em literatura viva, plural e responsável.

Artigo escrito por: Autora Cass Razzini

 

Acesse as redes da Litera:

Site: Clubelitera.com

Instagram: @literaworld_